quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Diálogo Sedicioso

Será que o tráfico realmente vai acabar? As Unidades de Polícia Pacificadora trouxeram essa pergunta. Por outro lado, será que a estratégia que o Estado abraçou no combate às drogas é producente? E se o Estado liberasse o uso? É difícil dizer. Mas algo é certo: enquanto houver consumo ilegal, haverá tráfico.

As drogas sintéticas em geral são drogas de verdade, foram concebidas pra viciar, tão matando muita gente e precisam ser exterminadas mesmo. E a situação da latina Marijuana, da xamânica Santa Maria, da sânscrita Ganja, da jamaicana Kaya, uma planta que é considerada droga? Falo de uma plantinha, que desde sempre foi erva medicinal/terapêutica de culturas milenares, e hoje é considerada droga. O brasileiro, tão negro e índio, perdeu o direito de plantar e colher essa erva? Perdeu o direito de fumá-la, inalá-la ou dela fazer chá? Perdeu o direito de simplesmente contemplá-la? O Estado tem esse direito? De proibir uma planta?! Joãozinho ficou confuso.

- Professora, se um dia cismarem com uma erva qualquer, como a camomila, a cidreira, a erva-doce, a hortelã, o boldo, a sálvia, o sene, o sambacaitá, ou outra qualquer, o Estado pode sem mais nem menos proibir-lhes o plantio e o consumo? Daí as pessoas que gostam daquelas ervas, que as utilizam de alguma forma vão ficar privados disso? Eu sei que fumar não faz bem, mas não é demais proibir a planta? Porque, professora, eu sei que autolesão não é crime e que as ervas em geral têm uso variado, terapêutico, culinário, têxtil, cosmético, estético. Se o Estado libera álcool e nicotina pra maiores de 18 anos, qual o problema de liberar a Santa Maria, uma erva que a mãe Terra desde sempre nos deu e sempre nos dará? Qual o problema de o Estado regulamentar o uso, fiscalizar a produção e tributar o produto, como é praxe? Eu não consigo entender, professora. Já pensou se o povo dos Andes fosse privado de mascar a folha da coca, se os funcionários públicos e empregados em geral fossem proibidos de tomar o bendito cafezinho, e ainda presos se resistissem à proibição? Faz algum sentido, professora, o que eu digo?

- É, Joãozinho, realmente isso tudo é muito curioso. Eu não deveria, porque você ainda é muito pequeno, mas vou lhe contar uma história. Foi na década de 30 que o governo americano cismou, proibiu no seu território e ainda fez lobby mundial para que os outros países também proibissem a então bastante popular marijuana. No começo do século XX os negros e latinos que habitavam os Estado Unidos da América gostavam da erva, costume que vinha de seus ancestrais. Os brancos logo descobriram que a melhor maneira de controlar, de “moralizar” os negros e latinos era criminalizar um de seus costumes: fizeram uma campanha mentirosa em que a erva era relacionada com crimes graves. Um descaramento. E assim transformaram a erva em coisa de criminoso, o que serviu de pretexto para a proibição. Além do mais, gente interessada na criminalização financiou a campanha do governo, naquele tempo o interesse empresarial na cannabis aumentava e preocupava a concorrência. E, coisa esquisita, impressionante, non sense, ininteligível, inefável, os Estados do mundo inteiro, inclusive o brasileiro, de uma hora pra outra, sem comprovação científica de dano, resolveram proibir a plantinha. Todo o mundo voltou-se contra uma plantinha.

- E foi, professora?! Quer dizer que na história do homem a plantinha sempre existiu, que não são nem cem anos de proibição? Que ela sempre foi usada para fins medicinais/terapêuticos? Então, não há motivo para proibi-la. Coitadinha dela, professora, nós homens sempre temos que culpar alguém, né?

- A proibição é o motor do tráfico, Joãozinho. E com a proibição e o tráfico, a planta atrai rebeldia, revolta, fuga. Não permanece a mesma, absorve muita negatividade e quando chega nas mãos do usuário não tem o mesmo efeito: é uma plantinha doente, que faz adoecer quem a usa. E isso serve pra tudo que é vivo, que é divino: cuide com amor, que esse amor volta pra você.

Entendo, professora, e tem gente que quer ganhar dinheiro fácil e rápido e resolve “traficar” a erva. Não seria agora o momento oportuno, professora, de o Estado brasileiro mudar de estratégia e descriminalizar pelo menos a plantinha? Serve de experiência, fazer o mesmo com as drogas de verdade talvez dê certo.

- É, Joãozinho, a lei hoje no Brasil diferencia usuário de traficante. As penas para o usuário são leves, ele é tratado como doente, e não há prisão. A punição para o traficante é muito dura. Acontece que quem financia mesmo o tráfico, traficante de verdade raramente vai preso. Nem sempre é fácil diferenciar traficante de usuário. E outra: o mundo não vai parar de se relacionar com a erva. Nessa caldeira de povos, numa nação tão miscigenada como o Brasil, proibir uma erva é impraticável. Eu realmente acho que está na hora de o Estado regulamentar o uso, fiscalizar a produção e tributar o produto, como é praxe. E deixar livre quem quiser plantar a erva para consumo pessoal, como acontece com as outras. Já passou da hora dessa hipocrisia e desse preconceito acabarem. O problema é o tráfico, não a erva.

- E quem gosta da erva, professora?

- Não existe perfil, Joãozinho. Trabalhadores braçais, músicos, pintores, escritores, intelectuais, místicos, religiosos, pais de família, não existe perfil. A Ganja tá no mundo há muito tempo, é muita pretensão do homem querer acabar com ela. China, Índia, Egito, Europa, América, ela existe no mundo todo. E chegou aqui no Brasil... Quer dizer, o relacionamento com a Santa Maria vem dos índios que habitavam o Brasil antes de chegaremos os europeus, que também já usavam o cânhamo para fabricar roupas, cordas. Dizem que a esquadra de Colombo chegou à América lotada de cannabis. E os negros africanos que aqui chegaram como escravos também trouxeram a cultura da erva, para aliviar o peso do trabalho. Ou seja, a Ganja faz parte do imaginário do povo. É cultura.

- Vou falar pro meu pai, professora, ...

- Não, Joãozinho, não fale pra ninguém! Sou professora e não posso falar essas coisas pra uma criança. Ai, meu Deus! Você vai me meter numa enrascada, Joãozinho, volte aqui!