sábado, 12 de maio de 2012

O SINTAGMA

Por Danilo Vilela - pansconpia.wordpress.com

 

O pai deu ao filho uma nota de cem reais. Papai sempre foi pão-duro, um mão-de-vaca do caralho. Por que aquilo? O filho tinha razão. De fato, não havia lógica alguma naquele gesto.

O pai tinha acabado de ler seu jornal. Ou achou que já tivesse lido o suficiente. Passou a página do editorial, que falava sobre os avanços da política macroeconômica de juros altos. Leu artigos, aqueles colunistas de sempre criticando alguém ou alguma coisa do governo ou todo o governo – ou criticando tudo, como velhos em mesa de bar.

Por alguns minutos, porém, o Sr. Severo teve sua atenção estacionada numa manchete que dizia “Por crise, aposentado grego se suicida na frente do Parlamento”. Tempos de merda, já não nos matamos por amores, pensou. Terminou de ler a matéria e descansou o jornal sobre a mesa. Ali, aberto.

O filho jogava videogame nesse momento. Teve certeza de que ouvira um som parecido com o de um soluço. Só podia ser seu pai. Moravam apenas ele e o filho naquele apartamento espaçoso. Beba água que passa logo, pai, disse o filho, atento às imagens confusas, velozes e caóticas iam de um lado pra outro na tevê.

Está tudo bem, filho.

O Sr. Severo era triste, mas não gostava de compartilhar sua tristeza. Ex-militante de esquerda, desiludiu-se com as brigas internas dos partidos e pôs-se a debruçar sobre os estudos. Formou-se em Direito, advogou por alguns anos e passou num concurso para juiz. Pronto, cheguei onde queria, era como pensava. Casou-se, teve um filho, mas dois anos depois foi traído. A mulher veio a morrer num acidente de carro. O amante dirigia muito rápido. Aquele imbecil.

Criou o filho sozinho. Cândido contava dezesseis anos. Mero aluno regular. Tinha uma capacidade impressionante de não se concentrar em nada do que fazia. Só o videogame. Deve ser hiperativo, disse certa vez uma psicóloga, conhecida do pai, que andava preocupado.

Mas o pai gostava da companhia do filho. Sabia que havia tempo pra tudo. Uma dia ele ia aprender, era o que imaginava. Sr. Severo e sua vocação para ser alma resignada. Por vezes, sentia-se fraco, sem ânimo. Mas era desses que insistia em se esconder na mesma medida em que escondia sua fraqueza. Às vezes – e no máximo – caminhava com lentidão.

Com passos lentos, o pai caminhou até o quarto do filho. Parou na porta. Olhou tudo. O edredom cobrindo a cama. Travesseiro de nasa. Alguns bonecos que o filho ainda mantinha nas suas estantes. Mesa de estudo, papéis de um lado, livros espalhados pra lá e pra cá. Computador. A televisão e o videogame ao lado. E uma cortina estampada com figuras de heróis americanos.

Homem-Aranha, né?

Hã? O filho deu uma pausa no jogo.

Homem-Aranha. Me lembro dele. Gostava muito quando tinha sua idade. Passava um seriado.

Ah, sim, é, disse o filho, reticente. Homem-Aranha, mesmo, pai, disse como se aquilo não lhe fizesse diferença alguma. E voltou-se ao videogame.

O pai aproximou-se, o garoto nem notou. Mexeu no bolso, tirou uma nota de cem reais e estendeu-a, na frente do menino, causando-lhe súbito espanto.

O garoto deu outra pausa no jogo. Pai, mas que raios?...

O nome disso é dinheiro, filho.

Sim, né, eu sei que é dinheiro, pô!...Mas pra quê isso? E...por que agora?

O nome disso é dinheiro, filho.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Quem bater no filho é a mulher do padre

Existe hoje no Brasil uma crença de que uma lei qualquer consegue revolucionar os costumes do brasileiro. Você acredita que a Lei Seca convenceu de que não se deve beber e dirigir? Ou que a Lei Maria da Penha diminuiu os casos de violência doméstica? Ou que o pai vai deixar de bater no filho por conta da nova Lei da Palmada?

Até 2003, a pena mínima para o porte ilegal de arma de fogo era de um ano de reclusão. Com o Estatuto do Desarmamento, a pena mínima passou para dois anos. Em 2006, a nova Lei de Drogas firmou a pena para quem traficar drogas ilícitas em cinco anos de reclusão, no mínimo, dois a mais do que a anterior. Eu fico me perguntando se quem mexe com arma ou droga se sentiu intimidado por essas penas mais altas. Eu realmente acredito que esse pessoal não consulta um advogado antes.

Foi no século XVIII, no tempo dos Iluministas, do antropocentrismo, do combate ao absolutismo, que um estudioso do Direito Penal chamado Beccaria deixou bem claro que o importante é a certeza da punição para quem viola as normas de comportamento social, não a quantidade de pena. Há três séculos é consenso entre os que se debruçam de verdade sobre o fenômeno do crime que se deve abandonar o direito penal vingativo e irracional. Se penas altas resolvessem o problema, não haveria no Brasil crimes de estupro (seis anos no mínimo), homicídio (seis anos no mínimo), muito menos latrocínio (vinte anos no mínimo). Se se precisa de dez passos para resolver esses problemas de arma, droga, violência, bebice no trânsito, essas leis são apenas meio passo. Quanto mais justiça social, oportunidade, cuidado, menos violência. Por isso, não queira culpar um bode expiatório qualquer, somos todos culpados, sem exceção. Nessa longa caminhada, cada um deve fazer a sua parte.

Uma das funções do Direito Penal é encarcerar um grupo social indesejado, fazê-lo desaparecer com os métodos mais violentos. É varrer a sujeira para debaixo do tapete. Historicamente sempre foi assim, o Estado, para resolver um problema “rapidinho”, dá um “jeitinho” e criminaliza um costume ou uma conduta de um grupo social marginalizado. Pense na Guerra de Canudos e na criminalização de usuários de maconha, para ficar em apenas dois exemplos.

A nova agora é encarcerar usuários de crack, com a enganação de tratar-lhes a saúde, o vício. Um descaramento. O objetivo é “higienizar” as ruas das cidades brasileiras. Os profissionais das áreas afins já concluíram que manicômio não dá conta do recado, inclusive a política nacional já avançou nesse sentido. Mas agora vai regredir para enganar sei lá quem, uma tristeza. A chave é Assistência Social, Educação e Oportunidade.

Os produtores de vinhos colocam uma garrafa com dois dedos da bebida num lugar estratégico, próximo à plantação. É uma armadilha contra as moscas, que nunca mais conseguem escapar do recipiente. É assim que funciona com o sistema prisional: quem nele entra dificilmente sai.

Mas existe esperança, a nova Lei da Prisão Preventiva veio para assentar o que os juízes mais sensíveis já faziam: prisão é o último recurso, e só deve ser aplicada em casos excepcionalíssimos. Existem vários argumentos a favor e contra prisão, mas é este que me convence: a compaixão é um dos fundamentos de qualquer grande sistema filosófico ou religioso, é a base das relações humanas. Por isso, tenha piedade, a prisão é contraproducente para o preso e toda a sociedade, e não traz nada de bom para a vítima, apenas lhe satisfaz um desejo bobo de vingança. Seja solidário nessa hora também.

O melhor de tudo é que a nova Lei da Prisão Preventiva, assim como qualquer outra, é geral, serve para nós mesmos e para nossos filhos. Ou somos todos bonzinhos e nenhuma vez na vida dirigimos embriagados, ou difamamos alguém, ou furtamos qualquer objeto, ou fomos preconceituosos com algum grupo social diferente ou marginalizado, ou compramos CD e DVD pirata, ou plagiamos alguma ideia alheia? Tudo isso aí é crime, toda e qualquer pessoa é capaz de cometer um. A pena mais difícil de cumprir é a da opinião e a da nossa própria consciência.

Em breve sairá a nova Lei da Palmada. O mais legal é o apelido. Fosse eu um governante, lançaria uma campanha educativa com o seguinte slogan: quem bater no filho é a mulher do padre. Eu acredito de verdade que seria mais eficiente.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Bom dia, eu sou o ENEM

Caríssimos pais,

Meu nome é ENEM, sou o novo vestibular. Nasci em 1998 e estou crescidinho.

Sou fruto de muito estudo. Fui concebido como alternativa ao método tradicional de ensino: sou o primogênito da família Piaget.

Agora, eu estou tentando humanizar a educação brasileira, desrrobotizar seus filhos e filhas. Eu quero que eles aprendam a aprender, gostem de escola e de estudar. Eu não gosto de ver tristeza na escola, muito menos medo de prova. Quero mais leveza e menos rigorismo. Por isso carrego propostas diferentes das tradicionais.

Eu quero ensinar meus alunos e alunas a analisar informações, formular ideias e chegar a conclusões próprias, sem imitar as dos outros. Quero ajudá-los a entender a vida e as coisas da vida, quero que eles descubram sozinhos a riqueza do conhecimento. Quero que eles sejam capazes de caminhar com pernas próprias, de descobrir o próprio talento e valorizar o dos outros.

Quero resgatar o valor da arte, quero que eles vivam a arte da vida. Quero que eles sejam conscientes de si e do mundo, que eles respeitem a si e ao próximo. Quero alçá-los à condição plena de vida.

Quero preencher de sabedoria o vazio que está cheio de droga. Droga de todo tipo. Por isso meu programa é diferente. Eu sou capaz de aceitar as várias habilidades que são dadas aos seus filhos e filhas, e de exercitá-las até que brotem boas flores e bons frutos.

O corpo fala e não mente. Por isso quero resgatar a importância da educação física, do corpo-expressão-saúde. Quero ensiná-los a importância da postura, da inteligência corporal. E da boa nutrição, da escolha acertada dos alimentos. Quero deixá-los preparados para a epopeia da vida.

Eu proponho mudanças na base da educação, na base do ensinar-aprender. Se a educação no Brasil precisa mudar, o protagonista é a criança, e isso passa inevitavelmente pela figura do educador. Então, peço a compreensão de vocês, pais e professores.

O primeiro passo é mudar a “sala” de aula. Eu proponho que o professor leve, ou melhor, volte a levar, os alunos e alunas ao jardim, ao parque e à floresta, ou ao circo, ao teatro e à apresentação de rua, para apreender-lhes a riqueza biológica, físico-química, matemática, histórica, cultural, sociológica, ambiental, étnica, poética. E - porque não? - filosófica. Eu quero desmistificar a filosofia. Eu quero que os alunos entendam que o ponto de vista é o xis da questão, que a verdade é plural.

Eles não aguentam mais o palavreado de cientista. Fora do laboratório, eu os deixo livres para “apelidar” as coisas e os fenômenos que lhes aparecem à fronte. E, fascinadas, compreenderão as diferenças culturais e étnicas, serão tolerantes às várias religiões e cultos, e verão a vida com mais poesia.

Eu quero ver menos adolescentes confusos e psicologicamente debilitados. Quero ajudá-los a realizar sonhos. O Brasil, agradeçamos, é rico demais e precisa do talento de todos.

A meninada não quer saber o que é uma oração subordinada substantiva concessiva, muito menos identificar o objeto direto pleonástico da frase. Ela quer condições de se comunicar bem - ler, falar e escrever melhor.

Eu quero formar pessoas conscientes de si e do mundo, cidadãos e cidadãs sabedores de seus direitos e deveres. Quero que os alunos e alunas entendam melhor a importância da política na construção de um estado Justo. Por isso, tenham paciência comigo. Eu não sou mal. Não importa que partido político me colocou em cena, o que importa é que eu estou aqui para melhorar a educação brasileira.

Mas o caminho é penoso, não é porque houve um pequeno vazamento de provas que eu não presto. Enfrentar os problemas do Brasil é tarefa homérica. No entanto, eu estou confiante, porque quando a intenção é boa o Destino ajuda.

Fico por aqui e espero vê-los satisfeitos comigo nos próximos anos.