quarta-feira, 28 de setembro de 2011

BRINCANDO COM O LIXO

Por Daniel Neiva

 

“Papai, não pode jogar lixo no chão. A professora disse que a gente tem que jogar o lixo no lixo.” “Tem razão, meu filho.” - Diz o pai encabulado com a lição do garoto, antes de recolher o papel que jogara na areia da praia. A cena é mesmo daquelas que alimentam a esperança nas futuras gerações.

Mas lá vem o curioso garotinho com suas perguntas: “Pra onde vai o lixo, papai? O que fazem com ele?”. Nó na garganta do papai, que vai ter de explicar a dura realidade dos lixões. Isso se o garoto for um sortudo, e tiver um preceptor consciente, que não lhe responderá apenas “Eles pegam e levam embora...”

A campanha da cidade limpa é mesmo interessante! Todo o lixo que produzimos deve ser jogado na lata do lixo. Fim! De lá aquele lixo deve seguir a vida dele, ou então, vai desaparecer magicamente, de preferência num momento em que não estejamos passando por perto, afinal o caro leitor não gosta de sentir aquele cheiro desagradável dos “mágicos” em seus caminhões de lixo.

O que se vê no tratamento dos resíduos sólidos em nossa cidade lembra em muito aqueles desenhos animados em que o personagem varre o lixo e, com toda esperteza, empurra pra debaixo do tapete. Pronto! Problema resolvido.

Interessante como fomos educados apenas para tirar o lixo da nossa frente. Se está no chão, vai pro lixeiro mais próximo. Se ele já ficou cheio, juntamos tudo e colocamos na porta de casa. Acumulou na porta, reclamamos o recolhimento pela prefeitura. Mas e depois? “Ah, depois eu não vejo mais. Vai ver que sumiu.”

Para o pobre Papai, entender esse comportamento é muito mais fácil que explicar ao garoto porque ainda continuamos lidando com o lixo da mesma forma que os homens das cavernas, ou ainda pior. Sim, porque, antes da dita evolução dos selvagens, os restos de comida já eram empilhados e às vezes enterrados em um local específico para esse fim (soa familiar...). Ah, mas não antes que fossem separadas as sacolas plásticas e as embalagens de leite longa vida...

Papai consciente quer dar uma aula de consciência ambiental ao garoto. Para isso deverá bradar sua fúria contra a sociedade do consumo, que produz lixo muito mais rápido do que a natureza consegue digerir. Só que vai ficar difícil manter a coerência quando o moleque vir que, a cada ida ao supermercado, Papai traz uma infinidade de sacolas plásticas contendo garrafas pet e embalagens de congelados, além dos lanchinhos empacotados que vão alimentar ele e o irmãozinho, que ainda usa fraldas descartáveis...

Se Papai for um cara “antenado”, preocupado com a reciclagem, ele deve estar fazendo uma coleta seletiva em casa, ainda que ignorando a necessidade de reduzir e reutilizar a quantidade imensa de lixo que produz. Engajado, ele separa seus resíduos sólidos pra que eles possam ser novamente misturados e reunidos logo ali, no caminhão de lixo, junto com todo o resto.

Ainda que essas incoerências sejam explicadas ao garoto astuto, dificilmente o menino vai descobrir a quem interessa manter uma política pública que simplesmente ignora tudo isso. Difícil entender a permissividade do Estado, que fecha os olhos para que famílias vivam no meio dos lixões, ao invés de fomentar uma simples usina de resíduos em que essas mesmas famílias possam garantir sustento de uma forma digna, gerando muito mais renda do que a obtida na perigosa clandestinidade das pilhas de lixo, agora bem mais modernas que na pré-história.

O importante é que na escolinha as crianças já aprenderam: lugar de lixo é no lixo. Assim fazemos uma cidade limpa, educada e melhor pra todos, certo? Enquanto isso, fingimos discutir os rumos para uma distante política pública de resíduos sólidos na nossa cidade, o que, aos olhos do garotinho, bem parece uma brincadeira. Sem graça, é verdade, mas ele ainda não entende o tal mau gosto. Se bem que talvez ele acabe por compreender os planos para o futuro de sua geração – afinal, brincar é com ele mesmo.

Papai, encurralado, já sabe o que fazer. Desconversa e se esquiva das perguntas tão difíceis, distraindo o filhão com um bate bola na praia, que já anda poluída pelos dejetos também esquecidos pelo poder público. Mas isso já é uma outra brincadeira...

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Popó “El Sinistron”

Me llamo Popó “el sinistron”

Popó... porque me llamo Popó

            “El sinistron”... porque soy sinistron!

Sentia um misto de prazer e orgulho quando se apresentava assim. Dizia as palavras de forma expressiva, pausada, com eloquência. Batia de leve a mão esquerda no peito e levantava o queixo diante da primeira parte, afirmativa. Para dizer a segunda e a terceira, explicativas, tirava a mão do peito, apontava o dedo indicador para cima e fitava seu interlocutor, olho no olho. Enquanto dizia “soy sinistron”, arregalava os dois olhos, e o olhar se perdia, assim como o juízo. E dizia o último “tron” de maneira rasgada e alongada. Um momento de Glória.

Tinha malícia de malandro e brilho no olhar. Cativou assim confiança e amizade de Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló. Os dois se conheceram na escola, Popó “El Sinistron” e Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló cresceram, saíam por aí e pera ali, e chegaram naquela psicodelia peculiar da adolescência. Fa-á-bi-o conta com alegria e nostalgia o dia em que Popó pegou aquele jarro-pênis da Laranja Mecânica e botou na cabeça feito coroa. Queria ser o rei do crime, mas era o rei das graças.

Na escola, depois de conhecer Macunaíma, Popó transformou brother Marcos em celphone e ring, ring, ring pra Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló, que, quando chegou, viu brother Marcos com partes arrancadas e jogadas na parede. “El Sinistron” não gostou da pane telefônica e foi acometido de súbito pela destruição. Arquejante, Brother Marcos se destransformou, braço quebrado, perna torta, bateria capenga, nariz sangrando, visor estourado, olho roxo, todo esbagaçado. “Agora vou mimi com o adorável Ludwig Van”, suspirou Popó.

No dia do Santo, Dai-me, Popó “El Sinistron” ralou o olho. Chamou Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló para brincar com as meninas do Acre, mas elas não entenderam quando Popó disse que queria delirá-las e curá-las. Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló ainda tentou precatá-lo: “Esse chá mais essas nega, óia, se saia”. Elas viajaram e não chamaram Popó, que magoou e tomou o chá alone in the dark. “E nos delírios meus grilhos temer”. Zé deu o recado, e Popó foi parar na terra do Ralo, veio um ralador gigante e lhe ralou O Olho. Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló só observava.

Uns dois minutos depois da ralada, Popó estava estatelado de peito pra cima, e Blhelelé Blheleló, banzeiro, tentava compreender. Popó, na viagem onírica, conferenciava com Macunaíma.

- Sou um herói sem nenhum caráter.

- E eu me llamo Popó “El Sinistron”

         Popó... porque me jamo popó,

                        “El Sinistron”.... porque soy sinistron!

- Você é feio, subaco e sem estilo, Popó, mas me siga.

Popó “El Sinistron” viajou de ave(ão) com Macunaíma e foi parar na foz do Rio São Francisco. Lá de cima compreendeu pela primeira vez. Ficou impressionado com as imensidões se encontrando.

- The big sun is in the eye... - disse o ave(ão).

- É... e, prazer, me llamo Popó “El Sinistron”

                                   Popó... porque me jamo Popó,

                                                        “El Sinistron”... porque soy sinistron.

Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló via Popó “El Sinistron” deitado no Acre, se debatendo e grunhindo baixinho. O juízo dele está atormentado. Popó, Popó, acorda, as nega já foram. E tentou trazê-lo de volta, saudando-o com o canto tribal de sempre, que foi criado, recriado e burilado durante anos de amizade fiel:

- Popó-ó-ó Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelgh Blhelg llo baba Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelg Blhelg Blhelelóóó!!!

A tentativa não deu certo, Popó não escutava Fa-á-bi-o e pulou de cabeça dentro do Atlântico, na maior natação. Várias piruetas extraordinárias, nem se ligou no perigo. Tava de caranguejo conversando com um tubarão. Crepusculava, e Macunaíma se preocupou. Então se fantasiou de jiboia voadora e foi buscá-lo no fundo do mar.

- Me llamo Popó “El Sinistron”

Popó... porque me jamo Popó,

            “El Sinistron”... porque soy sinistron!

Subitamente JiboÍma se enrolou todo em Popó e alçou voo pro céu, onde o ave(ão) os resgatou e deu pagação:

- Porra, porra, porra, Sinistrão!

Macunaíma agora se vestiu de magistrado e aplicou-lhe a punição:

- Vai pra Rondônia visitar Beira-Mar, vou te transformar em anjinho e você vai pregar.

Popó “El Sinistron”, de auréola, foi pra Rondônia e chegou pra Beira-Mar:

- Me llamo Popó “El Sinistron”

  Popó... porque me llamo popó,

                         “El Sinistron”... porque soy sinistron. Vim pregar. Trouxe um prego, um martelo, e vou te pregar.

Beira-Mar comandava um crime pelo celular, e depois de ouvir Popó pensou que era mais pena. O narrador pausa quando Popó, martelo em riste, já ia pregar Beira-Mar.

E despausa quando Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló, aperreado, não sabia o que fazer. Via Popó naquela alucinação e se sentia impotente. Resignou-se que não podia ajudar, é assim mesmo, o efeito é longo e penoso. Mas teve uma ideia: trocou martelo por machado e Rondônia por Amazônia.

Popó “El Sinistron” estava agora na Floresta Amazônica. Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló, apreensivo, o acompanhava. Popó caminhava ao nada, olhos abertos e perdidos. De repente parou de frente a uma árvore, machado à mão, e exclamou para si mesmo, baixinho e repetidamente:

“Aqui é uma árvore,

e eu me llamo Popó “El Sinistron”,

                     Popó... porque me llamo Popó,

                                “El Sinistron”... porque soy sinistron!...”

Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló tomou-lhe o machado e sentiu que ele convalescia. Muita coisa havia se dissolvido, e Popó já entendia quem era de verdade. Em reverência, Fa-á-bi-o inclinou-se diante da árvore, e se convenceu de que recomeçavam a construção.