domingo, 27 de março de 2011

Cobaias da SMTT

 

No trânsito, estamos na mesma situação dos ratinhos de laboratórios: somos cobaias. A Superintendência Municipal de Trânsito e Transporte está fazendo várias experiências conosco...

Há alguns dias, este que vos escreve pedalava ao crepúsculo ali pela rua que dá nos fundos do G. Barbosa da Francisco Porto, no sentido que encontra o rio Sergipe. E se deparou com aquele cruzamento. O leitor deve saber de qual estou falando. É curioso, passei alguns minutos procurando um adjetivo para caracterizá-lo, mas não aconteceu. Enfim, a cena era uma cruz de carros, com algumas deformações ao longo dos eixos. No encontro deles a situação era crítica. Cruz lembra martírio, sofrimento: o cruzamento estava um nó górdio, um microcosmo regado a (barulho de motor), buzina, fumaça e caretas. Fui contaminado: minha reação foi apontar o dedo indicador direito em direção à orelha direita e girá-lo ao redor dela, para externar a sensação desagradável. Agradeci pela espontaneidade contida, porque caso soltasse as duas mãos iria ao asfalto. Tudo indica que se estivesse a pé correria doido: Aaahhhhhhhhhhhh!!!

“A preferência é de quem vem de lá ou de cá?”, me perguntei. “Era de lá, mas agora é de cá”, respondi para mim mesmo. Os cientistas da SMTT não param de brincar. Beleza, todo o mundo sabe que as vias não foram projetadas para essa quantidade de carros, mas as brincadeiras da SMTT são tão mirabolantes, que os motoristas-ratinhos ficam confusos. Depois de confundir a todos naquele cruzamento, observei que a SMTT colocou duas placas discretas de PARE nas esquinas e, no asfalto, há uma “pintura” desbotada. Encontrei o adjetivo: desbotado. Aquele cruzamento está desbotado, perdeu o brilho, a firmeza. E a SMTT, a credibilidade. Faltou veemência: um quebra-molas ou sonorizadores talvez resolvessem o problema. Os ratinhos se sentiriam melhor.

E essa multiplicação de pardais, lombadas e semáforos? São importantes, mas como qualquer instrumento, técnica, teoria, traje, discurso, existe o momento oportuno de usá-los. É a adequação. Se o dinheiro das multas servisse para financiar campanhas de educação no trânsito, como propagandas na televisão e no rádio, panfletos, jornais. Ou para o aprimoramento técnico do pessoal da SMTT. Ou para melhorar a engenharia do trânsito da nossa capital, vá lá. Aliás, quantos engenheiros de trânsito oficiam na SMTT? O cacique de lá é um médico e o coordenador de trânsito, um oficial da Policial Militar. Não será essa a razão de tantas experiências falhas e mirabolantes? Talvez por isso o cruzamento ficou desbotado e os ratinhos, confusos. Eu, de bicicleta, alucinei por um breve instante. Imagine um motorista na presidência do Banco Central, ou um cardiologista gerenciando uma grande rede de supermercados, ou um filósofo pilotando um boeing, ou um bombeiro militar na magistratura. Adequação, meus caros, adequação. Como hobby ou no video game pode dar certo. E um Humorista no Congresso? Não, esse último exemplo não serve porque até agora Tiririca está nos representando bem: votar a favor do aumento do salário mínimo na contramão da bancada é para poucos. Trânsito e o Transporte são coisas sérias.

Transporte né. Dá pra chamar de transporte público esses ônibus sujos, velhos, lotados e com tarifa cara? É mangação. Será que os caciques ou seus filhos andam de ônibus? Vá de carro, a pé, de bicicleta, voando, não vá. Ir de ônibus é perdido. Em horário de pico é mais ou menos como se embrenhar na selva: tem que saber se esgueirar, prestar muita atenção nos sons e no ambiente e tomar cuidados para não se machucar. Tarzan só sentiria da falta do cipó. Cacique é chefe de índio, e índio é bom de mato, mas não dá pra entender os caciques daqui, não facilitam a vida de seus índios. Outro dia o cacique da SMTT disse que não instalava passarelas em Aracaju, porque o povo daqui não tem costume de utilizá-la. Utilizar como se não existe por aqui? Eu só tenho lembrança de uma, próximo ao Atacadão.

As empresas responsáveis pelo transporte coletivo só servem pra financiar campanha eleitoral. Já prestou atenção nos ônibus que transportam os funcionários da Petrobrás, Vale do Rio Doce e outras empresas? Dá pra ir cochilando. Aqui em Aracaju, via de regra, agente de trânsito não serve pra orientar, educar e facilitar. Na maioria da vezes eles estão atrás de uma moita, multando. Multar, multar, multar. Vi no jornal que agentes de trânsito estavam sendo transferidos para outros setores sem justificativa. Um deles disse que não autuava há dois meses e desconfiava ser esse o motivo. Senhor, escutai a nossa prece!

Vou-me embora para Pasárgada / lá sou amigo do guarda / lá tenho o veículo que eu quero / na via que escolherei. Acorda, Bandeira. O destino do dinheiro das experiências da SMTT não é Trânsito nem Transporte. “Bossuet dizia que o verdadeiro fim da política era fazer os povos felizes; o verdadeiro fim da política dos políticos da Bruzundanga é fazer os povos infelizes” (Os Bruzundangas, Lima Barreto). Um século depois o papo continua o mesmo.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Homem coisa

Por Rodrigo Maia da Fonte.

rodrigo.maia_ufpe@hotmail.com

 

Após os fatídicos anos do colegial, época em que teve extrema dificuldade de saber exatamente a que grupo pertencia, Silva resolvera que precisava definir-se. Não se enquadrar em nenhum bando social já estava lhe incomodando.

Inspirado em uma aula de literatura do ensino médio, Silva chegou à conclusão de que todos aqueles garotos que o criticavam e o apontavam no colégio não passavam de burgueses coisificados. Naquele momento, a reificação das pessoas pareceu um motivo excelente para explicar as suas angústias.

Após a lição escolar, percebeu Silva que a alienação daqueles garotos os transformava em coisas. Nessa condição, sem pensar, eles se tornam preconceituosos, insensíveis e determinados a terem o mesmo futuro: serão católicos, inspirar-se-ão na cultura branca e estrangeira, se matricularão em cursos tradicionais e se formarão neles, se prenderão às gravatas nos seus cargos importantes, terão famílias iguais às dos seus vizinhos, serão infiéis, comprarão e consumirão, sem pensar, tudo aquilo o que os seus colegas publicitários lhe venderem (independente do quão antiético pareça aquele consumo), envelhecerão com bons planos de saúde e assim vai...

Determinado, Silva já sabia bem o que não queria ser, e, sem pensar, iniciou-se num processo de “identificação”. Já possuía algumas características que lhe rendiam o rótulo de “alternativo” aos padrões e resolveu afundar-se nessa opção.

A partir dali, Silva, sem pensar, passava a combater os “homens coisas”.

Foi então que, sem pensar, passou a se interessar por outras religiões. O seu Deus já não podia mais ser igual ao de todos aqueles garotos coisificados. É bem verdade que Silva nunca se preocupara em decifrar o que Deus significava para ele. Também ignorava o fato de que para conhecer Deus o homem precisa antes conhecer a si próprio. O que Silva sabia é que não podia ser igual aos meninos do colégio. E logo, sem pensar, resolveu que adotaria a religião dos longínquos habitantes de um pequeno povoado localizado num país que ele nada conhecia como sua nova religião. Dessa forma, não seria coisificado como os demais.

Motivado por seu ideal de combate ao rótulo dos “garotos coisas”, Silva resolveu que ao sair do colégio escolheria logo um curso bem diferente daqueles já conhecidos. Sabia, mesmo sem pensar, que nunca cursaria Direito, Medicina ou Engenharia. E assim o fez. Escolheu um curso bem diferente de tudo o que podia imaginar e então, sem pensar, determinou o que faria para o resto da vida.

Assim também o fez com os filmes, músicas e livros. Nada de blockbusters, música pop ou Paulo Coelho. Silva nunca vira, escutara ou lera nada disso, pois, sem pensar, sabia exatamente que aquele era o tipo de cultura dos seres “coisas”. Mesmo sem saber direito se era bom ou ruim, sem pensar, Silva não perdia um filme do Almodóvar, comprava vinis desconhecidos no mercado e só lia os artigos que não fossem científicos (além do Coelho, também não podia ler Machado de Assis, Rubem Fonseca ou Guimarães Rosa, uma vez que esses já haviam sido lidos por aqueles conhecidos garotos na época do vestibular).

A ideia, sem pensar, era a mesma para várias outras coisas: não ia casar, tinha ojeriza àqueles que andavam em seus carros, não compraria nada importado, não isso, não aquilo... com o tempo, sem pensar, falava com ironia para seus amigos que guardavam características dos “sujeitos coisas”: “você, quando quer ser diferente, namora uma garota de outro curso e se acha cult por isso...”; “já leu o novo livro do Harry Potter?”; “como andam suas aulinhas de direito?”...

Há pouco tempo, Silva acessava a internet quando, mesmo sem querer, leu uma notícia informando que um estilista famoso se manifestara publicamente de forma racista e antissemita e que tal manifestação havia sido gravada por um cinegrafista amador. Abaixo da notícia continha a informação: “para assistir ao vídeo, clique aqui”. Curioso, Silva clicou no local indicado e, após assistir com indignação à gravação, percebeu que o estilista lhe lembrava aquelas “pessoas coisas” as quais, alienadas e insensíveis, estavam sempre carregadas de preconceitos.

Com aquela imagem do estilista preconceituoso e dos meninos coisificados na cabeça, Silva, sem pensar, comentou com indignação o vídeo assistido: “essas ideias só poderiam ter saído da cabeça dessa bicha de merda... tinha que ser um veado enrustido...”.

Naquele momento, Silva completara com louvor todo o seu processo e, sem pensar, assim como os garotos da escola, havia se transformado em coisa. Em coisa também certamente já foi transformado este que vos escreve e provavelmente esse que agora lê tudo isso.