sábado, 12 de maio de 2012

O SINTAGMA

Por Danilo Vilela - pansconpia.wordpress.com

 

O pai deu ao filho uma nota de cem reais. Papai sempre foi pão-duro, um mão-de-vaca do caralho. Por que aquilo? O filho tinha razão. De fato, não havia lógica alguma naquele gesto.

O pai tinha acabado de ler seu jornal. Ou achou que já tivesse lido o suficiente. Passou a página do editorial, que falava sobre os avanços da política macroeconômica de juros altos. Leu artigos, aqueles colunistas de sempre criticando alguém ou alguma coisa do governo ou todo o governo – ou criticando tudo, como velhos em mesa de bar.

Por alguns minutos, porém, o Sr. Severo teve sua atenção estacionada numa manchete que dizia “Por crise, aposentado grego se suicida na frente do Parlamento”. Tempos de merda, já não nos matamos por amores, pensou. Terminou de ler a matéria e descansou o jornal sobre a mesa. Ali, aberto.

O filho jogava videogame nesse momento. Teve certeza de que ouvira um som parecido com o de um soluço. Só podia ser seu pai. Moravam apenas ele e o filho naquele apartamento espaçoso. Beba água que passa logo, pai, disse o filho, atento às imagens confusas, velozes e caóticas iam de um lado pra outro na tevê.

Está tudo bem, filho.

O Sr. Severo era triste, mas não gostava de compartilhar sua tristeza. Ex-militante de esquerda, desiludiu-se com as brigas internas dos partidos e pôs-se a debruçar sobre os estudos. Formou-se em Direito, advogou por alguns anos e passou num concurso para juiz. Pronto, cheguei onde queria, era como pensava. Casou-se, teve um filho, mas dois anos depois foi traído. A mulher veio a morrer num acidente de carro. O amante dirigia muito rápido. Aquele imbecil.

Criou o filho sozinho. Cândido contava dezesseis anos. Mero aluno regular. Tinha uma capacidade impressionante de não se concentrar em nada do que fazia. Só o videogame. Deve ser hiperativo, disse certa vez uma psicóloga, conhecida do pai, que andava preocupado.

Mas o pai gostava da companhia do filho. Sabia que havia tempo pra tudo. Uma dia ele ia aprender, era o que imaginava. Sr. Severo e sua vocação para ser alma resignada. Por vezes, sentia-se fraco, sem ânimo. Mas era desses que insistia em se esconder na mesma medida em que escondia sua fraqueza. Às vezes – e no máximo – caminhava com lentidão.

Com passos lentos, o pai caminhou até o quarto do filho. Parou na porta. Olhou tudo. O edredom cobrindo a cama. Travesseiro de nasa. Alguns bonecos que o filho ainda mantinha nas suas estantes. Mesa de estudo, papéis de um lado, livros espalhados pra lá e pra cá. Computador. A televisão e o videogame ao lado. E uma cortina estampada com figuras de heróis americanos.

Homem-Aranha, né?

Hã? O filho deu uma pausa no jogo.

Homem-Aranha. Me lembro dele. Gostava muito quando tinha sua idade. Passava um seriado.

Ah, sim, é, disse o filho, reticente. Homem-Aranha, mesmo, pai, disse como se aquilo não lhe fizesse diferença alguma. E voltou-se ao videogame.

O pai aproximou-se, o garoto nem notou. Mexeu no bolso, tirou uma nota de cem reais e estendeu-a, na frente do menino, causando-lhe súbito espanto.

O garoto deu outra pausa no jogo. Pai, mas que raios?...

O nome disso é dinheiro, filho.

Sim, né, eu sei que é dinheiro, pô!...Mas pra quê isso? E...por que agora?

O nome disso é dinheiro, filho.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Quem bater no filho é a mulher do padre

Existe hoje no Brasil uma crença de que uma lei qualquer consegue revolucionar os costumes do brasileiro. Você acredita que a Lei Seca convenceu de que não se deve beber e dirigir? Ou que a Lei Maria da Penha diminuiu os casos de violência doméstica? Ou que o pai vai deixar de bater no filho por conta da nova Lei da Palmada?

Até 2003, a pena mínima para o porte ilegal de arma de fogo era de um ano de reclusão. Com o Estatuto do Desarmamento, a pena mínima passou para dois anos. Em 2006, a nova Lei de Drogas firmou a pena para quem traficar drogas ilícitas em cinco anos de reclusão, no mínimo, dois a mais do que a anterior. Eu fico me perguntando se quem mexe com arma ou droga se sentiu intimidado por essas penas mais altas. Eu realmente acredito que esse pessoal não consulta um advogado antes.

Foi no século XVIII, no tempo dos Iluministas, do antropocentrismo, do combate ao absolutismo, que um estudioso do Direito Penal chamado Beccaria deixou bem claro que o importante é a certeza da punição para quem viola as normas de comportamento social, não a quantidade de pena. Há três séculos é consenso entre os que se debruçam de verdade sobre o fenômeno do crime que se deve abandonar o direito penal vingativo e irracional. Se penas altas resolvessem o problema, não haveria no Brasil crimes de estupro (seis anos no mínimo), homicídio (seis anos no mínimo), muito menos latrocínio (vinte anos no mínimo). Se se precisa de dez passos para resolver esses problemas de arma, droga, violência, bebice no trânsito, essas leis são apenas meio passo. Quanto mais justiça social, oportunidade, cuidado, menos violência. Por isso, não queira culpar um bode expiatório qualquer, somos todos culpados, sem exceção. Nessa longa caminhada, cada um deve fazer a sua parte.

Uma das funções do Direito Penal é encarcerar um grupo social indesejado, fazê-lo desaparecer com os métodos mais violentos. É varrer a sujeira para debaixo do tapete. Historicamente sempre foi assim, o Estado, para resolver um problema “rapidinho”, dá um “jeitinho” e criminaliza um costume ou uma conduta de um grupo social marginalizado. Pense na Guerra de Canudos e na criminalização de usuários de maconha, para ficar em apenas dois exemplos.

A nova agora é encarcerar usuários de crack, com a enganação de tratar-lhes a saúde, o vício. Um descaramento. O objetivo é “higienizar” as ruas das cidades brasileiras. Os profissionais das áreas afins já concluíram que manicômio não dá conta do recado, inclusive a política nacional já avançou nesse sentido. Mas agora vai regredir para enganar sei lá quem, uma tristeza. A chave é Assistência Social, Educação e Oportunidade.

Os produtores de vinhos colocam uma garrafa com dois dedos da bebida num lugar estratégico, próximo à plantação. É uma armadilha contra as moscas, que nunca mais conseguem escapar do recipiente. É assim que funciona com o sistema prisional: quem nele entra dificilmente sai.

Mas existe esperança, a nova Lei da Prisão Preventiva veio para assentar o que os juízes mais sensíveis já faziam: prisão é o último recurso, e só deve ser aplicada em casos excepcionalíssimos. Existem vários argumentos a favor e contra prisão, mas é este que me convence: a compaixão é um dos fundamentos de qualquer grande sistema filosófico ou religioso, é a base das relações humanas. Por isso, tenha piedade, a prisão é contraproducente para o preso e toda a sociedade, e não traz nada de bom para a vítima, apenas lhe satisfaz um desejo bobo de vingança. Seja solidário nessa hora também.

O melhor de tudo é que a nova Lei da Prisão Preventiva, assim como qualquer outra, é geral, serve para nós mesmos e para nossos filhos. Ou somos todos bonzinhos e nenhuma vez na vida dirigimos embriagados, ou difamamos alguém, ou furtamos qualquer objeto, ou fomos preconceituosos com algum grupo social diferente ou marginalizado, ou compramos CD e DVD pirata, ou plagiamos alguma ideia alheia? Tudo isso aí é crime, toda e qualquer pessoa é capaz de cometer um. A pena mais difícil de cumprir é a da opinião e a da nossa própria consciência.

Em breve sairá a nova Lei da Palmada. O mais legal é o apelido. Fosse eu um governante, lançaria uma campanha educativa com o seguinte slogan: quem bater no filho é a mulher do padre. Eu acredito de verdade que seria mais eficiente.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Bom dia, eu sou o ENEM

Caríssimos pais,

Meu nome é ENEM, sou o novo vestibular. Nasci em 1998 e estou crescidinho.

Sou fruto de muito estudo. Fui concebido como alternativa ao método tradicional de ensino: sou o primogênito da família Piaget.

Agora, eu estou tentando humanizar a educação brasileira, desrrobotizar seus filhos e filhas. Eu quero que eles aprendam a aprender, gostem de escola e de estudar. Eu não gosto de ver tristeza na escola, muito menos medo de prova. Quero mais leveza e menos rigorismo. Por isso carrego propostas diferentes das tradicionais.

Eu quero ensinar meus alunos e alunas a analisar informações, formular ideias e chegar a conclusões próprias, sem imitar as dos outros. Quero ajudá-los a entender a vida e as coisas da vida, quero que eles descubram sozinhos a riqueza do conhecimento. Quero que eles sejam capazes de caminhar com pernas próprias, de descobrir o próprio talento e valorizar o dos outros.

Quero resgatar o valor da arte, quero que eles vivam a arte da vida. Quero que eles sejam conscientes de si e do mundo, que eles respeitem a si e ao próximo. Quero alçá-los à condição plena de vida.

Quero preencher de sabedoria o vazio que está cheio de droga. Droga de todo tipo. Por isso meu programa é diferente. Eu sou capaz de aceitar as várias habilidades que são dadas aos seus filhos e filhas, e de exercitá-las até que brotem boas flores e bons frutos.

O corpo fala e não mente. Por isso quero resgatar a importância da educação física, do corpo-expressão-saúde. Quero ensiná-los a importância da postura, da inteligência corporal. E da boa nutrição, da escolha acertada dos alimentos. Quero deixá-los preparados para a epopeia da vida.

Eu proponho mudanças na base da educação, na base do ensinar-aprender. Se a educação no Brasil precisa mudar, o protagonista é a criança, e isso passa inevitavelmente pela figura do educador. Então, peço a compreensão de vocês, pais e professores.

O primeiro passo é mudar a “sala” de aula. Eu proponho que o professor leve, ou melhor, volte a levar, os alunos e alunas ao jardim, ao parque e à floresta, ou ao circo, ao teatro e à apresentação de rua, para apreender-lhes a riqueza biológica, físico-química, matemática, histórica, cultural, sociológica, ambiental, étnica, poética. E - porque não? - filosófica. Eu quero desmistificar a filosofia. Eu quero que os alunos entendam que o ponto de vista é o xis da questão, que a verdade é plural.

Eles não aguentam mais o palavreado de cientista. Fora do laboratório, eu os deixo livres para “apelidar” as coisas e os fenômenos que lhes aparecem à fronte. E, fascinadas, compreenderão as diferenças culturais e étnicas, serão tolerantes às várias religiões e cultos, e verão a vida com mais poesia.

Eu quero ver menos adolescentes confusos e psicologicamente debilitados. Quero ajudá-los a realizar sonhos. O Brasil, agradeçamos, é rico demais e precisa do talento de todos.

A meninada não quer saber o que é uma oração subordinada substantiva concessiva, muito menos identificar o objeto direto pleonástico da frase. Ela quer condições de se comunicar bem - ler, falar e escrever melhor.

Eu quero formar pessoas conscientes de si e do mundo, cidadãos e cidadãs sabedores de seus direitos e deveres. Quero que os alunos e alunas entendam melhor a importância da política na construção de um estado Justo. Por isso, tenham paciência comigo. Eu não sou mal. Não importa que partido político me colocou em cena, o que importa é que eu estou aqui para melhorar a educação brasileira.

Mas o caminho é penoso, não é porque houve um pequeno vazamento de provas que eu não presto. Enfrentar os problemas do Brasil é tarefa homérica. No entanto, eu estou confiante, porque quando a intenção é boa o Destino ajuda.

Fico por aqui e espero vê-los satisfeitos comigo nos próximos anos.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

ERRÂNCIA

Manchete: "Homem magro, de cabeça quadrada e bigode mexicano é o maratonista da Coroa do Meio”.

Os moradores do bairro se mostraram surpresos com o nível de irritação dele, que não parou de correr nem para dar entrevista. Amigos atribuem o estado de espírito do homem a um mero “babinha”.

“Ele discutiu com Roland Garros e saiu em disparada” - informa Goicotchéa Macedo.

“Ele deu dois gols, e eu disse que ele tava se mijando. Daí saiu assim, desse jeito”, explica Roland Garros.

Goicotchéa Macedo ainda acrescentou: “Liguei pra ele no outro dia e perguntei se tinha chegado bem em casa. E ele me respondeu, irado, com sotaque latino-americano e mastigando o bigode: “BARRIADO!”

O maratonista promete mais: “Sou capaz de correr até Maceió. Só vou apostado. Basta ficar “barriado”, que desatino e me meto a correr. Só vou apostado.”

Goicotchéa Macedo, questionado se o amigo realmente consegue, respondeu: “Talvez ele consiga. Uma vez correu de São Cristóvão para Aracaju, 25km ao todo, subindo e descendo ladeira. Só conseguiu se levantar da cama no terceiro dia, à base de relaxante muscular. Mesmo assim, se contorcia todo para subir um batente de dez centímetros. Eu acredito nele”.

Tudo indica que a população coroadomeioana também.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Cobais da SMTT (III)

Meyer, o alemão, entomologista, caçador de “barboletas” e “anicetos”, me ligou. Está espantado com o abandono do Trânsito: “não entendo como Arracaju chegou a esse situação”.

“O governo deve contrratar uma empresa de engenharia de trrânsito para remodelar o trráfego em Arracaju, uma cidade bonito, antes calmo e aconchegante. Na minha querrida Saxônia, ônibus e metrrô são nota dez, porque o governo cuida da trransporte pública com zelo e serriedade. Estimula, junto com as emprresas prrivadas, a bicicleta como meio de trransporte. Instalam ciclovias, bicicletários e vestiários. Carro, que é grrande, caro e poluidor, é o última opção”.

Meu olho ficou pendurado.

“Aqui em Arracaju, vejo que a lucrro dos empresas de ônibus é altíssimo, mas a serviço que fornecem é muito ruim. O atual legenda política, no poder de Arracaju há seis anos, e de Sergipe há quatro, está conivente. Não vejo disposição em melhorar de verdade o serviço de Trrânsito e Trransporte, fundamentais para o dinâmica de qualquer cidade. Pela andar do carruagem, isto é, pelo fumaça que sai das escapamentos e pela quantidade de pneus de carros, é uma questão de tempo Arracaju se igualar às metrópoles do Brrasil, digo, guardados as proporções, aprresentar as mesmas prroblemas no mesmo intensidade”.

É, Meyer, eu to pensando seriamente em sair de casa pela janela, voando.

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“Passo todos as dias pela avenida Tancrredo Neves e não vejo uma policial, nenhuma tipo de fiscalização. Uma via dessa calibrre, continuação da BR-235, por onde passam caminhões, ônibus, carros, motos, bicicletas e pessoas, deve ser monitorrada em todo sua extensão. Tem gente morrendo de moto nela toda semana”.

De cabeça pra baixo, eu era só ouvidos.

“E agorra, sem radar e lombada eletrrônica, as motorristas que se julgam pilotos descarregam o adrrenalina do automobilismo. Você soube de uma acidente em que a velocímetrro do BMW trravou em cento e oitenta quilômetrros por horra, ali perto do shopping Jardins?! Mein Gott!!!”.

This is the what´s the what a fucking wiplash, Meyer.

“A engenharria da S-M-T-T acha por bem enfiar semáforro em tudo que é crruzamento. Parrece que não sabem da existência de outros soluções. Não captaram o função exata das rótulas, que são passagens negociadas. Aquela do terminal de Atalaia é exemplar. Imagino que na maior parte do dia a semáforro pode ficar desligado, de modo que apenas a passagem negociada bem sinalizada funcionasse. Semáforro junto com rótula me parrece um monstro”.

(…) (...).

“Meu boca fica aberta com a ausência de sinalização em algumas crruzamentos, por exemplo ali na esquina do colégio Patrrocínio São José, no encontrro entrre as ruas Santa Luzia e Duque de Caxias, um perrigo! A jugular Tancrredo Neves é muito mal organizada, recentemente enfiaram uma semáforro na esquina do SEBRAE. O objetivo foi facilitar a vida do pedestrre, mas foi tão mal feito, que eles nem se aventurram em atrravessar por ali, e as motorristas naturalmente não respeitam. Na minha querrida Saxônia, isso se resolve com passarrela”.

É, Meyer, a coisa aqui tá preta.

“E não vejo avanços, carro Bartô. O coordenador de Trânsito de Arracaju é um oficial da Polícia Militar. É como colocar uma eletrricista para constrruir pontes, ou uma técnico de futebol parra elaborrar projetos de arquiteturra. É o mesmo que o Procurador Geral do Estado ser uma especialista em marketing”.

E eu me despedi de Meyer, a pensar na maneira mais adequada de sair pela janela, voando.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

BRINCANDO COM O LIXO

Por Daniel Neiva

 

“Papai, não pode jogar lixo no chão. A professora disse que a gente tem que jogar o lixo no lixo.” “Tem razão, meu filho.” - Diz o pai encabulado com a lição do garoto, antes de recolher o papel que jogara na areia da praia. A cena é mesmo daquelas que alimentam a esperança nas futuras gerações.

Mas lá vem o curioso garotinho com suas perguntas: “Pra onde vai o lixo, papai? O que fazem com ele?”. Nó na garganta do papai, que vai ter de explicar a dura realidade dos lixões. Isso se o garoto for um sortudo, e tiver um preceptor consciente, que não lhe responderá apenas “Eles pegam e levam embora...”

A campanha da cidade limpa é mesmo interessante! Todo o lixo que produzimos deve ser jogado na lata do lixo. Fim! De lá aquele lixo deve seguir a vida dele, ou então, vai desaparecer magicamente, de preferência num momento em que não estejamos passando por perto, afinal o caro leitor não gosta de sentir aquele cheiro desagradável dos “mágicos” em seus caminhões de lixo.

O que se vê no tratamento dos resíduos sólidos em nossa cidade lembra em muito aqueles desenhos animados em que o personagem varre o lixo e, com toda esperteza, empurra pra debaixo do tapete. Pronto! Problema resolvido.

Interessante como fomos educados apenas para tirar o lixo da nossa frente. Se está no chão, vai pro lixeiro mais próximo. Se ele já ficou cheio, juntamos tudo e colocamos na porta de casa. Acumulou na porta, reclamamos o recolhimento pela prefeitura. Mas e depois? “Ah, depois eu não vejo mais. Vai ver que sumiu.”

Para o pobre Papai, entender esse comportamento é muito mais fácil que explicar ao garoto porque ainda continuamos lidando com o lixo da mesma forma que os homens das cavernas, ou ainda pior. Sim, porque, antes da dita evolução dos selvagens, os restos de comida já eram empilhados e às vezes enterrados em um local específico para esse fim (soa familiar...). Ah, mas não antes que fossem separadas as sacolas plásticas e as embalagens de leite longa vida...

Papai consciente quer dar uma aula de consciência ambiental ao garoto. Para isso deverá bradar sua fúria contra a sociedade do consumo, que produz lixo muito mais rápido do que a natureza consegue digerir. Só que vai ficar difícil manter a coerência quando o moleque vir que, a cada ida ao supermercado, Papai traz uma infinidade de sacolas plásticas contendo garrafas pet e embalagens de congelados, além dos lanchinhos empacotados que vão alimentar ele e o irmãozinho, que ainda usa fraldas descartáveis...

Se Papai for um cara “antenado”, preocupado com a reciclagem, ele deve estar fazendo uma coleta seletiva em casa, ainda que ignorando a necessidade de reduzir e reutilizar a quantidade imensa de lixo que produz. Engajado, ele separa seus resíduos sólidos pra que eles possam ser novamente misturados e reunidos logo ali, no caminhão de lixo, junto com todo o resto.

Ainda que essas incoerências sejam explicadas ao garoto astuto, dificilmente o menino vai descobrir a quem interessa manter uma política pública que simplesmente ignora tudo isso. Difícil entender a permissividade do Estado, que fecha os olhos para que famílias vivam no meio dos lixões, ao invés de fomentar uma simples usina de resíduos em que essas mesmas famílias possam garantir sustento de uma forma digna, gerando muito mais renda do que a obtida na perigosa clandestinidade das pilhas de lixo, agora bem mais modernas que na pré-história.

O importante é que na escolinha as crianças já aprenderam: lugar de lixo é no lixo. Assim fazemos uma cidade limpa, educada e melhor pra todos, certo? Enquanto isso, fingimos discutir os rumos para uma distante política pública de resíduos sólidos na nossa cidade, o que, aos olhos do garotinho, bem parece uma brincadeira. Sem graça, é verdade, mas ele ainda não entende o tal mau gosto. Se bem que talvez ele acabe por compreender os planos para o futuro de sua geração – afinal, brincar é com ele mesmo.

Papai, encurralado, já sabe o que fazer. Desconversa e se esquiva das perguntas tão difíceis, distraindo o filhão com um bate bola na praia, que já anda poluída pelos dejetos também esquecidos pelo poder público. Mas isso já é uma outra brincadeira...

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Popó “El Sinistron”

Me llamo Popó “el sinistron”

Popó... porque me llamo Popó

            “El sinistron”... porque soy sinistron!

Sentia um misto de prazer e orgulho quando se apresentava assim. Dizia as palavras de forma expressiva, pausada, com eloquência. Batia de leve a mão esquerda no peito e levantava o queixo diante da primeira parte, afirmativa. Para dizer a segunda e a terceira, explicativas, tirava a mão do peito, apontava o dedo indicador para cima e fitava seu interlocutor, olho no olho. Enquanto dizia “soy sinistron”, arregalava os dois olhos, e o olhar se perdia, assim como o juízo. E dizia o último “tron” de maneira rasgada e alongada. Um momento de Glória.

Tinha malícia de malandro e brilho no olhar. Cativou assim confiança e amizade de Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló. Os dois se conheceram na escola, Popó “El Sinistron” e Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló cresceram, saíam por aí e pera ali, e chegaram naquela psicodelia peculiar da adolescência. Fa-á-bi-o conta com alegria e nostalgia o dia em que Popó pegou aquele jarro-pênis da Laranja Mecânica e botou na cabeça feito coroa. Queria ser o rei do crime, mas era o rei das graças.

Na escola, depois de conhecer Macunaíma, Popó transformou brother Marcos em celphone e ring, ring, ring pra Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló, que, quando chegou, viu brother Marcos com partes arrancadas e jogadas na parede. “El Sinistron” não gostou da pane telefônica e foi acometido de súbito pela destruição. Arquejante, Brother Marcos se destransformou, braço quebrado, perna torta, bateria capenga, nariz sangrando, visor estourado, olho roxo, todo esbagaçado. “Agora vou mimi com o adorável Ludwig Van”, suspirou Popó.

No dia do Santo, Dai-me, Popó “El Sinistron” ralou o olho. Chamou Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló para brincar com as meninas do Acre, mas elas não entenderam quando Popó disse que queria delirá-las e curá-las. Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló ainda tentou precatá-lo: “Esse chá mais essas nega, óia, se saia”. Elas viajaram e não chamaram Popó, que magoou e tomou o chá alone in the dark. “E nos delírios meus grilhos temer”. Zé deu o recado, e Popó foi parar na terra do Ralo, veio um ralador gigante e lhe ralou O Olho. Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló só observava.

Uns dois minutos depois da ralada, Popó estava estatelado de peito pra cima, e Blhelelé Blheleló, banzeiro, tentava compreender. Popó, na viagem onírica, conferenciava com Macunaíma.

- Sou um herói sem nenhum caráter.

- E eu me llamo Popó “El Sinistron”

         Popó... porque me jamo popó,

                        “El Sinistron”.... porque soy sinistron!

- Você é feio, subaco e sem estilo, Popó, mas me siga.

Popó “El Sinistron” viajou de ave(ão) com Macunaíma e foi parar na foz do Rio São Francisco. Lá de cima compreendeu pela primeira vez. Ficou impressionado com as imensidões se encontrando.

- The big sun is in the eye... - disse o ave(ão).

- É... e, prazer, me llamo Popó “El Sinistron”

                                   Popó... porque me jamo Popó,

                                                        “El Sinistron”... porque soy sinistron.

Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló via Popó “El Sinistron” deitado no Acre, se debatendo e grunhindo baixinho. O juízo dele está atormentado. Popó, Popó, acorda, as nega já foram. E tentou trazê-lo de volta, saudando-o com o canto tribal de sempre, que foi criado, recriado e burilado durante anos de amizade fiel:

- Popó-ó-ó Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelgh Blhelg llo baba Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelgh Blhelgh llo baba Blhelg Blhelg Blhelelóóó!!!

A tentativa não deu certo, Popó não escutava Fa-á-bi-o e pulou de cabeça dentro do Atlântico, na maior natação. Várias piruetas extraordinárias, nem se ligou no perigo. Tava de caranguejo conversando com um tubarão. Crepusculava, e Macunaíma se preocupou. Então se fantasiou de jiboia voadora e foi buscá-lo no fundo do mar.

- Me llamo Popó “El Sinistron”

Popó... porque me jamo Popó,

            “El Sinistron”... porque soy sinistron!

Subitamente JiboÍma se enrolou todo em Popó e alçou voo pro céu, onde o ave(ão) os resgatou e deu pagação:

- Porra, porra, porra, Sinistrão!

Macunaíma agora se vestiu de magistrado e aplicou-lhe a punição:

- Vai pra Rondônia visitar Beira-Mar, vou te transformar em anjinho e você vai pregar.

Popó “El Sinistron”, de auréola, foi pra Rondônia e chegou pra Beira-Mar:

- Me llamo Popó “El Sinistron”

  Popó... porque me llamo popó,

                         “El Sinistron”... porque soy sinistron. Vim pregar. Trouxe um prego, um martelo, e vou te pregar.

Beira-Mar comandava um crime pelo celular, e depois de ouvir Popó pensou que era mais pena. O narrador pausa quando Popó, martelo em riste, já ia pregar Beira-Mar.

E despausa quando Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló, aperreado, não sabia o que fazer. Via Popó naquela alucinação e se sentia impotente. Resignou-se que não podia ajudar, é assim mesmo, o efeito é longo e penoso. Mas teve uma ideia: trocou martelo por machado e Rondônia por Amazônia.

Popó “El Sinistron” estava agora na Floresta Amazônica. Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló, apreensivo, o acompanhava. Popó caminhava ao nada, olhos abertos e perdidos. De repente parou de frente a uma árvore, machado à mão, e exclamou para si mesmo, baixinho e repetidamente:

“Aqui é uma árvore,

e eu me llamo Popó “El Sinistron”,

                     Popó... porque me llamo Popó,

                                “El Sinistron”... porque soy sinistron!...”

Fa-á-bi-o Blhelelé Blheleló tomou-lhe o machado e sentiu que ele convalescia. Muita coisa havia se dissolvido, e Popó já entendia quem era de verdade. Em reverência, Fa-á-bi-o inclinou-se diante da árvore, e se convenceu de que recomeçavam a construção.